Os fatos já são claros. A primeira vara criminal de São Bernardo do Campo, no curso de ação criminal que corre em segredo, a requerimento do MP, determinou o bloqueio do WhatsApp por 48 horas. Pelo que foi divulgado, o WhatsApp não haveria atendido a determinação judicial de julho de 2015, reiterada em agosto. Cogita-se que a ação criminal diga respeito a traficante do Primeiro Comando da Capital.
Tais decisões não são comuns, mas, por vezes, aparecem no anedotário jurídico. Em fevereiro, certo juiz de Teresina determinou que as telefônicas suspendessem o acesso ao WhatsApp. Em 2013, juiz de São Paulo ameaçou retirar o Facebook do ar, caso fotos da apresentadora Luize Altenhofen, por ela consideradas ofensivas, permanecessem no ar. Em janeiro de 2007, a justiça de São Paulo bloqueou o acesso ao Youtube em função de vídeo com cenas de Daniela Cicarelli e seu namorado.
O que dizer de tal quixotismo judiciário virtual? Em primeiro lugar, são decisões bizarramente desproporcionais. É como se, para evitar que os namorados continuem se agarrando na sala, venha-se a demolir o quarteirão de casas. Ou, em analogia mais próxima, vir-se a proibir o tráfego na BR 116 porque a concessionária não responde a ofícios do juízo. Parece haver desproporcionalidade sob a ótica da proporcionalidade estrita, já que os impactos de se retirar do ar o WhatsApp – ou o Facebook – são certos e praticamente inquantificáveis, mas enormes.
Sob a ótica do exame das consequências da decisão judiciais, abordagem que, integrada ao exame da proporcionalidade, ganha curso no Judiciário, estas decisões também não se sustentam. Os custos associados a estas proibições – diretos e indiretos – são enormes. No mínimo, fomentam cultura de insegurança jurídica, em que todo e qualquer juiz pode suspender, sob qualquer pretexto, redes sociais, plataformas de comunicação, operações bancárias, e por aí vai. É importante observar que há diferença significativa entre ameaçar prender ou multar – a ameaça-padrão do Judiciário em caso de descumprimento de decisões – e suspender um dos maiores instrumentos de comunicação do brasileiro em 2015. Quanto mais abrangente e espalhafatosa a decisão, mais custosa, e tendencialmente injusta, ela é.
Pode-se argumentar que as empresas devem respeitar ordens judiciais. É fato (ainda que se possa alegar que só decisões judiciais exequíveis devam ser obedecidas). Mas é igualmente fato que o Judiciário deve respeitar a realidade. Georges Ripert uma vez afirmou que “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”. Essa frase, de tão importante, devia cair em concurso público para a magistratura e para o MP.
E há ponto final que merece destaque. Salvo casos crônicos de auto-importância juizídica, decisões judiciais dessa monta não são decisões que, sinceramente, esperam poder ser executadas. O juiz que as prolata não quer julgar, mas praticar um ato expressivo. O quixotismo judiciário é o irmão da insinceridade decisória. São as multas de centenas de milhões de reais para pessoas físicas; as ameaças de prisão de secretários de saúde em recusas de remédios. É o Judiciário fazendo-se de tigre de papel. A coisa toda se passa como num jogo surreal, em que nem o juiz vai prender, nem o secretário vai ser preso, mas todos agem como se isso fosse possível e provável.
A cada decisão judicial insincera, o jogo se torna mais ridículo. A cada decisão judicial insincera que vem a ser executada, o mundo se torna mais absurdo.
Então, eis o nosso dilema: entre o ridículo e o absurdo, vamos internalizando custos, tornando nossas avenidas virtuais mais inseguras, dinamitando quarteirões para evitar namoros, bloqueando redes de celulares para evitar nudes. Já é hora de parar com isso.
Fonte: jota.info
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