O processo penal visto pela Teoria dos Jogos (a partir do texto célebre de Piero Calamandrei) é uma das maneiras mais criativas de se ver a realidade do processo penal e seu ambiente. No Brasil, isso foi desenvolvido pelo professor Alexandre Morais da Rosa (UFSC e Univali) em uma já larga obra, de muitos textos esparsos e, principalmente, seu Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, agora na 4ª edição, de 2017.
É mais ou menos como “a vida como ela é”, de Nelson Rodrigues. A realidade — é sintomático — presta-se a uma leitura que empana muito da força do dever ser e, naturalmente, não se presta a expressar o ser. Eis por que a realidade não se pode confundir com o real, na base lacaniana, sendo certo que este (o real) está no lugar do impossível; da impossibilidade de ser simbolizado. Lacan lia Heidegger e vai aí uma boa dose da diferença entre ser e ente.
A realidade, portanto, expressa o entificado; e não há nenhum problema com isso; ou muito pelo contrário. O problema é querer que ela seja o que ela não é, coisa que se tem pretendido com muito vigor nos dias atuais — e cada vez mais, usando-se para tanto jogos retóricos e, portanto, uma linguagem dissimuladora.
O processo penal visto a partir da Teoria dos Jogos aparece, então, como um imenso esforço para puxar a todos para a realidade; e impedir que o imaginário (eis o lugar no qual estão os golpes de linguagem), por si só, estabeleça e faça ser cumprido o sentido que aflora de uma hermenêutica manipuladora; e sempre ideológica, diriam Warat, Coelho e Tércio, para ficar em só três dos grandes.
Quando em pauta, porém, estão as escaramuças do processo penal, com muita frequência tem-se a impressão de que os jogadores podem fazer qualquer coisa, podem dizer qualquer coisa porque, afinal, se se trata de uma competição, os fins justificam os meios dado que o importante, sem dúvida, é ganhar. Essa é, por certo, a visão neoliberal. É como se valesse (pela impressão que se tem), gol de mão no futebol; ippon pela desistência do adversário, no judô, em face de um dedo no olho que o juiz não viu.
Se se tem tal impressão, ela é equivocada.
Antes de tudo porque o jogador — do qual se esforça para tratar o professor Alexandre Rosa — é um subjectu, isto é, um sujeito (ali no processo travestido de parte ou juiz ou outro participante) colocado debaixo da lei, começando pela Constituição da República. Não há, portanto, lugar para uma liberdade sem limites. O jogo, afinal, só se sustenta como tal porque tem regras; e elas (com os princípios que as suportam) devem ser levados a sério, como enfaticamente queria Dworkin.
Por isso, quando as proposições se parecem com “golpes baixos” e têm a impressão de que se está apontando para a ilegalidade, em verdade só se está, pelo que se percebe se se lê corretamente, desvelando uma nova forma de jogada, um novo tipo de drible, sempre debaixo da lei.
É certo, sem dúvida, que sempre ficarão fissuras, brechas, campos opacos. Eles são, contudo, resultado da linguagem, sem a qual o Direito não se constitui. Isso, todavia, remete à hermenêutica e o imenso campo que ela oferece ao intérprete para ser ele mesmo e, diante das suas escolhas, mostrar sua cara, mostrar quem ele é.
Fora estão, portanto, as ilegalidades.
Logo, se alguém imaginou que o processo penal visto pela Teoria dos Jogos é um estudo que incentiva o jogador a levar vantagem a qualquer custo, está enganado. Em tempos de crise e muita confusão, como o que se está a viver, vale sempre a afirmação do abade Lacordaire: “A liberdade escraviza e a lei liberta”.
O professor Alexandre Morais da Rosa não dispensa nem a legalidade nem a ética. E isso deve ser entendido em sua obra, que, por certo, não está terminada; e ele sabe disso. Veja-se, só um pequeno exemplo: “O problema subjetivo de se ganhar um jogo sem fair play é o de que o charlatão pode ter sua reputação desfeita quando desveladas suas práticas. (…) Esse compromisso ético dos jogadores/julgadores, todavia, encontra-se mergulhado em fatores antecedentes de adesão individual, nos quais as regras processuais podem ser manipuladas. Há certa deriva ética no processo penal brasileiro e a teoria dos jogos, do ponto de vista formal, pode lançar luzes sobre como deve acontecer o jogo processual com fair play, quem sabe valendo-se das disposições do art. 77, do NCPC. Por isso, justifica-se a noção de doping. (…) O Estado não pode praticar ilegalidades, omitir informações desfavoráveis, valer-se de métodos não autorizados em lei, potencializar inescrupulosamente elementos probatórios, mesmo que os agentes pensem que seja por bons motivos, aumentando a capacidade de se obter vitórias processuais”
Fonte: ConJur
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