A aprovação do projeto de lei de proteção de dados pessoais merece comemoração. Se sancionado, finalmente inserirá o Brasil no rol de mais de 100 países com tratamento legislativo específico sobre o assunto. Artigos e entrevistas recentes cuidaram de progressos, desafios e impactos da nova lei. Contudo, um tópico ainda chama atenção: haveria vício de iniciativa e, portanto, inconstitucionalidade, na criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD)?
Um passo atrás: no mérito, uma autoridade forte, específica e independente está em consonância com boas práticas internacionais. Não se trata de modelo necessário, visto haver diferentes arranjos possíveis, mas sua instituição aliada à adoção de políticas regulatórias contemporâneas salvaguarda e qualifica atividades típicas de fiscalização, enforcement e normatização. Mais: sua autonomia pode garantir que o próprio Estado seja visto sob o prisma de monitorado / fiscalizado, não de beneficiário / controlador.
Ainda, como bem se sabe, eventual veto à criação da ANPD pode pautar-se por motivos outros que não a sua (falta de) base constitucional. A grave crise financeiro-orçamentária pode derrubar a medida. O debate político sobre a alocação das competências recém-aprovadas, desejada por diferentes órgãos no governo, também.
Quanto ao lastro jurídico, tem-se uma autoridade desenhada, ao fim e ao cabo, por projeto de lei de iniciativa parlamentar. Em resumo, alega-se que a criação da autarquia de regime especial e as normas daí decorrentes – composição, vinculação, fontes orçamentárias – atingem o art. 2º e, especialmente, o art. 61, §1º, II, da Constituição Federal, alíneas ‘a’ e ‘e’.
De acordo com a CF/88, são de iniciativa privativa do Presidente da República leis que criem ou extingam Ministérios e outros órgãos da Administração Pública, ou que criem cargos na Administração direta ou autárquica. A previsão é usualmente compreendida em sentido lato, envolvendo toda a Administração (abrange, pois, órgãos e entidades administrativas). O texto também serve, frequentemente, à derrubada da imposição de novas competências a órgãos de governo e de políticas públicas criadas diretamente pelo Poder Legislativo.
Fora de moda, convém relembrar o básico: a Constituição Federal tem força normativa e deve ser, portanto, observada. Por mais meritório e relevante, ou por mais amplo apoio que congregue, nenhum PL está desobrigado de observar o crivo constitucional.
No mais, a reserva de lei ao Presidente da República tem razão de ser. Baseia-se na separação de poderes e indica duas chaves: garante ao Executivo (i) a prerrogativa de controlar a forma e o modo do funcionamento básico da Administração e, em linha frequentemente esquecida, (ii) o juízo de oportunidade, a escolha do momento da alteração.
Nesse sentido, fora de dúvida que, em tese, e à luz do texto da Constituição, projeto de lei de iniciativa parlamentar que cria órgão (ou entidade) da Administração Pública atinge o desenho de competências legislativas posto. Haveria, pois, inconstitucionalidade insuperável e insanável, a justificar eventual veto.
A jurisprudência do STF aponta nesse sentido. Primeiro, há o tradicional entendimento de que sanção presidencial não convalida vício de iniciativa. Leis específicas que dão prazo ou obrigam o Executivo a legislar em temas de sua própria competência também têm sido majoritariamente derrubadas, por motivos similares. O Executivo não poderia ser compelido a tomar decisão que lhe é reservada; o juízo de oportunidade integra a competência privativa.
Em debates parlamentares e nos vetos da Presidência da República, a alegação de vício de iniciativa aparece com ainda mais frequência e vigor. No Legislativo, a impossibilidade de impor obrigações ao Executivo ou de criar órgãos e entidades é mobilizada às dezenas. Nos vetos, referências à afronta à separação de poderes e à invasão da competência legislativa privativa do Presidente são recorrentes.
Não obstante, o debate ganha contornos menos seguros quando o processo legislativo é visto de perto. Não é – ou não deveria ser – segredo que, frequentemente, Executivo e Legislativo legislam conjuntamente. Na prática há evidente simbiose, e debates centrados nas regras constitucionais do processo legislativo estão longe de captar tal dinâmica.
De um lado, parlamentares levam sugestões legislativas ao Executivo, que por vezes as acata; de outro, o Executivo, no legítimo anseio de realizar seu projeto político, sugere, altera e remenda, direta ou indiretamente, iniciativas parlamentares. Não raro, textos de diferentes atores são aglutinados e tramitam em conjunto, aproveitando o caminho adiantado de um deles. Ainda, projetos elaborados formal ou informalmente pelo Executivo pegam carona em projetos de iniciativa parlamentar (e vice-versa).
Embora imperfeito, o caso atual é em alguma medida ilustrativo. Mostra como a dinâmica real se afasta de desenhos normativos pré-definidos. Formalmente de iniciativa legislativa, a redação aprovada valeu-se fortemente do projeto de lei apresentado pelo Poder Executivo, em 2016, e dos debates e consultas ali realizados, ao menos desde 2010. Valeu-se, inclusive, de prioridades de tramitação e do amplo apoio obtido ao longo do processo.
O PL do Executivo não criou explicitamente a autoridade nos moldes aprovados. No entanto, em opção heterodoxa, trouxe atribuições “ao órgão competente designado para zelar pela implementação e pela fiscalização desta lei”. Estavam lá, no original, competências agora aprovadas, embora ausente sua composição e vinculação. A justificativa do PL é , paradoxalmente, lacunosa e explícita: “a proposta prevê um órgão competente para a proteção de dados pessoais no país”.
Segundo o parecer da Comissão Especial da Câmara, do deputado Orlando Silva, havia consenso técnico sobre a necessidade de um órgão centralizado, independente e autônomo para gerir o tema – o que, sim, corresponde à realidade. No mais, como traz o parecer: “a proposta do Executivo já previa a designação de um órgão competente para fiscalizar o setor, o que autoriza a apresentação de emendas parlamentares nesta área”. É esse o argumento que tenta embasar a constitucionalidade da proposta: “o texto foi amplamente discutido e se baseia [no mérito e em parte da tramitação] em um projeto de origem do Executivo [por isso não haveria vício]”.
No Senado, o desejo de não devolver o PL à Câmara e de já o enviar à sanção, decorrente do senso de urgência e do amplo apoio público que não recomendava empecilhos, fez com que a questão não fosse avaliada a fundo. Em suma, desenho aprovado.
Inescapável que, na letra fria, e especialmente a partir da definição da composição da autarquia e de seu regime, o PL invade a previsão constitucional da iniciativa privativa do Presidente da República (art. 61, §1°, II). Formalmente há vício e, pois, inconstitucionalidade. Contudo, não se deve fechar os olhos para a dinâmica real do processo legislativo, frequentemente ausente das avaliações jurídicas tradicionais. Nada apaga tratar-se de texto explicitamente baseado em projeto formalmente apresentado pelo Executivo que, de forma voluntária, e quiçá como produto do acordo interno possível, eximiu-se da decisão final: criou competências sem responsável direto, enviando-as ao debate parlamentar.
A interpretação parece frágil: a base última da previsão constitucional da iniciativa privativa teria sido observada, visto que o Executivo se posicionou formal e explicitamente a favor de órgão competente e, em última medida, a ele anuiu; decidira, pois, tanto a forma quanto o momento de sua criação. No entanto, ela se adequa à narrativa de quem efetivamente participou dos debates. E demonstra o quão largo pode ser o fosso entre dinâmica parlamentar e ritos formais do processo legislativo.
É bastante provável que o futuro da ANPD seja resolvido, ao final do dia, por motivos políticos e/ou financeiro-orçamentários. A depender dos debates no governo, e na contramão do movimento que lutou pela lei, ainda há risco do Estado transmutar-se de garantidor em ameaça. Eventualmente, o veto ganhará roupagem jurídica que, embora justificável por si só, poderá apenas legitimar a posteriori a decisão governamental.
Nada obsta, contudo, que solução de compromisso, adequada ao debate de fundo, seja assumida e executada: a criação, em ato contínuo ou em futuro próximo, com a devida guarida constitucional, de autoridade independente, multisetorial e especificamente competente para o assunto.
Seja como for, a lição que fica é outra. É preciso levar mais a sério o debate sobre vício de iniciativa e suas justificativas. É inconteste que situações distintas podem exigir soluções distintas. Merecem, ao menos, abordagens mais cuidadosas.
Fonte: jota.info
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