Em meio aos desdobramentos das operações articuladas pela Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário, além das tensões entre Poderes a partir do início do processo de impeachment da Presidenta da República, certas análises apontam para um cenário institucional mais alentador do que aquele que colocaria o Estado brasileiro imerso em uma crise institucional sem precedentes: nossas instituições são resilientes e estão funcionando.
Mas fica a pergunta: será mesmo? Funcionando para que e para quem?
O impactante e internacionalmente premiado documentário canadense The Corporation, lançado em 2003 e produzido por Mark Achbar e Jennifer Abbott, baseado em roteiro adaptado do livro The Corporation: The Pathological Pursuit of Profit and Power, propôs uma análise crítica e perspicaz acerca da ascensão da corporação na sociedade contemporânea, a partir de uma decisão da Suprema Corte americana que, em 2010, entendeu que uma companhia tem personhood — isto é, condição de pessoa — aos olhos da lei. O filme, tomando seu status como uma “pessoa” legal, coloca a corporação em uma espécie de “divã do psiquiatra” para perguntar: Que tipo de pessoa é?
Em um paralelo com a realidade institucional brasileira, para esboçar um começo para essa “análise”, primeiramente, faz-se necessário distinguir instituição de corporação. Nessa esteira, Pablo Holmes, Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL/UnB), pontua que a raiz terminológica de ambas são antigas, no entanto, uma breve genealogia dos conceitos é reveladora de considerável diferença.
A palavra instituição é vaga e sua definição é bem abrangente nas ciências sociais. Suas raízes etimológicas latinas apontam, de fato, para a palavra institutio, que quer dizer estabelecimento. Mas o conceito passou a designar, sobretudo depois do começo da modernidade, a ideia de uma “ordem”. Assim, para as ciências econômicas e sociais, as instituições são compreendidas como o conjunto de regras que estruturam organizações e arranjos sociais, influenciando o comportamento dos indivíduos.
Em contrapartida, o conceito de corporação, segundo o politólogo, remonta à raiz medieval da palavra germânica Zunft, que em português é traduzido por corporações de ofício. Sua origem etimológica aponta também para a palavra latina corpus, sendo utilizada na atualidade pela Ciência Política e pela Sociologia para designar corpos profissionais que se estruturam em torno de interesses, sendo capazes de representá-los nos arranjos e compromissos do Estado.
Daí decorre o conhecido conceito de corporativismo, que significa a “defesa dos próprios interesses em detrimento dos interesses da coletividade”. O termo é empregado quando uma categoria profissional organizada (uma corporação) mobiliza-se para garantir algum direito ou privilégio. Fala-se então em exercício de “espírito de corpo”, geralmente em tom pejorativo.
Para a Sociologia, em síntese: a instituição é a própria representação da Sociedade perante o Estado, comprometida com as suas demandas republicanas, enquanto que a corporação é voltada para os interesses particulares, sendo considerada uma tentativa típica do Estado Moderno de promover a unidade entre a particularidade individual e a universalidade do coletivo, em uma mediação entre Estado e Sociedade.
Retornando à realidade brasileira, dois episódios ilustram bem este quase drama shakespeareano de nossa consciência institucional: ser instituição ou corporação, eis a questão. O primeiro fora o envio de dois projetos de lei (Mensagens 611 e 612/2015) pela Presidente da República ao Congresso Nacional, no penúltimo dia de 2015, que reajustaram os subsídios de advogados públicos federais, regularam o pagamento de honorários de sucumbência e permitiram, pasmem, o exercício da advocacia privada.
O segundo e mais recente foi a sanção da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) pela Presidente da República que parecia finalmente haver posto um freio nos gastos com auxílio-moradia, no valor de R$ 4.377 por mês, para parlamentares, autoridades (membros da Magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública da União) e servidores. A medida previa restrições ao gozo do benefício para que, ao contrário do que acontece hoje, o dinheiro não fosse pago sem a apresentação do recibo de comprovação de gasto com aluguel ou hotel, ou se a pessoa ou seu cônjuge tiver residência própria.
Todavia, conforme publicado em matéria do Correio Braziliense, oito associações de juízes, promotores e procuradores ameaçaram ir ao Supremo Tribunal Federal caso a Presidente da República não vetasse a medida. “Não se hesitará em adotar as providências pertinentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, guardião maior da Constituição”.
À época, o doutor em economia e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Felippe Serigatti anteviu uma disputa corporativa no Judiciário. “O pessoal vai utilizar o que for para defender seu pedacinho no bolo”, afirmou. “Em valores absolutos, consome muito. Você não vai ter uma única conta que vai resolver (o ajuste). São diversos benefícios. Na hora em você soma todos os benefícios, você acha a raiz do problema.”
Serigatti ainda avaliou o assunto em termos éticos: “Se o cara mora na mesma cidade, porque vai receber auxílio-moradia?”, questionou. “Não faz o menor sentido no discurso mais razoável, de bom senso. Mas o que o pessoal está defendendo é: ‘Não mexam na fatia do meu bolo’.”
O economista Raul Velloso, PhD pela Universidade de Yale, nos EUA, afirmou também que a medida era necessária para o ajuste.“Quando se está em situação difícil, você soma vários (benefícios) assim e ajuda a resolver o problema”, disse ele.“Qualquer migalha é relevante. Tem que mexer no que puder. Tem que ir atrás. O governo tem que vasculhar tudo, um mapeamento do que pode cortar.”
Na contramão da história, atendendo a apelos corporativos sem maiores justificativas e buscando evitar uma nova e desgastante judicialização (não nos esqueçamos do julgamento do impeachtment a ser retomado pelo STF no retorno do recesso do Poder Judiciário), a Presidente da República capitulou ao autorizar nessa última terça-feira (19) a abertura de crédito extraordinário, por meio da Medida Provisória n° 711, em favor de diversos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, da Defensoria Pública da União e do Ministério Público da União, no valor de R$ 419.460.681,00, retornando ao statu quo ante bellum (o estado em que as coisas estavam antes da guerra).
Felizmente, a análise do funcionamento das instituições democráticas, de como se dá sua operacionalização, de suas mudanças e de como estas influenciam o comportamento dos indivíduos voltou a ser, nas duas últimas décadas, um fértil campo de estudos em diversas áreas das ciências humanas e sociais, mormente a partir do neoinstitucionalismo.
Em meio à profunda crise econômica (e quem sabe também institucional/corporativa?) na qual estamos submetidos, veio a calhar a publicação preliminar de pesquisa desenvolvida em parceria entre Luciano da Ros, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Matthew Taylor, da Universidade Americana, de Washington, intitulada “Abrindo a caixa-preta: três décadas de reformas do sistema judicial do Brasil”, a ser divulgada na íntegra este ano.
Referido estudo aponta para o custo da Justiça no Brasil a partir de um comparativo das despesas com as instituições que compõem o Sistema Justiça: O gasto é de 0,32% do PIB na Alemanha, de 0,28% em Portugal, de 0,19% na Itália, de 0,14% na Inglaterra e de 0,12% na Espanha. Nos Estados Unidos, 0,14%. Na América do Sul, a Venezuela consome 0,34%, o Chile, 0,22%, a Colômbia, 0,21%, e a Argentina, 0,13%.
Em 2014, na antessala da crise, as instituições do Sistema Justiça consumiram 68,4 bilhões de reais em verbas públicas, o equivalente a 1,2% das riquezas produzidas pelo País no período, vide distribuição abaixo do Orçamento Geral da União. A conta inclui as repartições federais, estaduais, trabalhistas, eleitorais e militares. E não leva em conta o Supremo Tribunal Federal e seus R$ 577 milhões de orçamento. Trata-se do Judiciário mais caro do mundo, ou ao menos do Ocidente. E não se farta. Quer mais dinheiro, não para acabar com a ineficiência e a morosidade dos tribunais, mas para engordar contracheques desde sempre generosos.
Em recente publicação intitulada “A tolice da inteligência brasileira”, o sociólogo e atual presidente do IPEA, Jessé Souza, quase que como uma espécie de parecer psicanalítico acerca das nossas instituições (ou seriam corporações? confesso que a esta altura podemos não mais saber ao certo) pontua que “a sociedade moderna diz de si mesma que superou todos os privilégios injustos”, fazendo com que os privilégios injustos de hoje, com viés estritamente corporativos, não possam “aparecer” como privilégios, mas sim como “mérito pessoal” de indivíduos mais capazes ou travestidos de supostos interesses de todos – independência funcional, incentivos para a melhoria do exercício da carreira de Estado – para, claro, melhor atender aos cidadãos.
O que fica de lição institucional deste breve desvelar dos Poderes no divã é que um governo fraco sempre ficará suscetível ao achaque das corporações, sejam elas públicas ou privadas; que, diante da sanha patrimonialista dessas e da impossibilidade orçamentária de manter tais privilégios, o Estado pode vir fatalmente a ser por elas “capturado” e last but not least que não apenas a Academia, mas, principalmente, a sociedade brasileira em geral precisam colocar as nossas instituições “no divã” para lhes perguntar: quem vocês são? A quem vocês servem?
Fonte: jota.info
Preencha os campos e informe o código para o download