A doutrina e a jurisprudência costumam classificar os tributos quanto à finalidade ou quanto à função predominante em tributo fiscal e extrafiscal. Com base nos ensinamentos de Ricardo Alexandre, fala-se em tributo de finalidade fiscal quando sua função principal é arrecadar, carrear recursos para os cofres públicos, mesmo que ele, de forma secundária, também tenha outros reflexos. Já o tributo de finalidade extrafiscal é aquele que tem como função preponderante alcançar objetivos distintos da arrecadação, basicamente objetiva uma intervenção econômica ou social (ALEXANDRE, 2015). Nas palavras de Sacha Calmon:
A extrafiscalidade, basicamente, é o manejo de figuras tributarias, diminuindo ou exasperando o quantum a pagar com o fito de obter resultados que transcendem o simples recolhimento do tributo, muito embora a instrumentação extrafiscal não signifique, necessariamente, perda de numerário. Muitas vezes redunda em maior receita, como em certos casos de agravamento de alíquotas, visando a inibir determinados comportamentos, hábitos ou atividades consideradas inconvenientes. É o caso, no Brasil, da pesada tributação sobre o consumo de bebidas e cigarros. (COÊLHO, 2015, p 315-316)
É pacífico que o ICMS possui como predominante a função fiscal, ou seja, a finalidade primordial almejada com a tributação por esse imposto é a arrecadação de recursos financeiros (SABBAG, 2016). A única excepcionalidade que comumente chega a ser destacada pelos doutrinadores é o caso de a Constituição Federal, em seu art. 155, § 2.º, III, permitir que o ICMS seja seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços (ALEXANDRE, 2015). Nesse caso há a possibilidade de uma extrafiscalidade com a tributação mais elevada para determinados bens, como os supérfluos; bens nocivos à saúde, como cigarros e bebidas; bens que geram perigo comum, como armas, munições e explosivos etc. Dessa forma, com essa seletividade prevista na Constituição é possível, indiretamente, fazer com que sofram uma tributação mais incisiva as pessoas de maior capacidade contributiva, ou até mesmo desestimular o comércio de certos bens, além de outras interferências na economia.
Apesar dessa exceção na Constituição Federal, seguindo as lições dos economistas, o mais recomendado é que a tributação sobre os bens e serviços seja neutra. Isso por causa dos diversos efeitos negativos que se tem quando um tributo intervém na economia de modo a distorcê-la (VASCONCELLOS, 2014). Nas palavras de Xavier de Bastos, neutralidade é “a característica de um tributo que se analise de não alterar os preços relativos das alternativas sobre que recaem as escolhas dos agentes econômicos, não originando assim, ‘distorções’ dos seus comportamentos” (XAVIER DE BASTOS, 1991, p. 29 apud BINS, 2009, p. 613).
Segundo Paulo Caliendo, o sentido de neutralidade fiscal tem como base a ideia de que a tributação objetiva primordialmente a exata contribuição do indivíduo à manutenção da esfera pública e não a utilização do tributo como um mecanismo de intervenção econômica. Logo, a tributação deve ser tão neutra quanto possível, não devendo o tributo se transformar em um fator essencial de decisão do agente econômico nas suas escolhas de investimento. Nessa linha, o sistema tributário não deve provocar a distorção do sistema econômico, acarretando impacto negativo na eficiência e tornando-se um empecilho ao desenvolvimento. (CALIENDO, 2009 apud VASCONCELLOS, 2014).
Sem dúvidas, o ponto mais criticado quando um ente passa a utilizar o tributo com finalidade extrafiscal é a quebra da livre concorrência, violando diretamente o princípio da isonomia (FERREIRA, 2013). Pois certas pessoas são beneficiadas em detrimento de outras que se encontravam na mesma situação. Nesse caso há violação direta à Constituição Federal, tanto no que se refere ao princípio da isonomia tributária (art. 150, II, da CF/88), quanto à livre concorrência (estabelecido expressamente como princípio da ordem econômica, no art. 170, IV, da CF/88). Seguindo esse raciocínio, a parcela da doutrina que adota a visão tradicional do tema neutralidade fiscal se posiciona no sentido da preservação do estado das coisas, isso pressupõe, de certa forma, que as escolhas de mercado são justas quando são livres. Portanto, não deve o Estado interferir no comportamento privado por meio da tributação. Na realidade, é dever seu preservar as escolhas feitas pelos particulares na cadeia econômica de circulação (MIRAGILIA, 2008 apud VASCONCELLOS, 2014).
No entanto, sob um entendimento mais “moderno”, parte da doutrina defende que ocorre, de fato, a “neutralidade fiscal” quando o Estado usa da tributação para intervir na economia, visando corrigir deficiências do mercado e alcançar outros objetivos na ordem econômica. Passa-se, então, a utilizar a extrafiscalidade do tributo para combater os efeitos contrários à livre concorrência (VASCONCELLOS, 2014). Nessa linha, o Estado deve usar o sistema tributário como estímulo à concorrência, por meio de políticas fiscais, quando ela for imperfeita e estiver desencadeando efeitos negativos para o mercado. Já no caso em que existir concorrência aproximadamente perfeita, promovendo resultados positivos para o mercado e, ao mesmo tempo, sem contrariar as políticas sociais e econômicas do país, deve ser evitada ao máximo que a tributação interfira nesse sistema econômico (BRAZUNA, 2009 apud VASCONCELLOS, 2014).
É perceptível que esse raciocínio está diretamente relacionado com a ideia de isonomia material, muito aclamada pela doutrina moderna. No entanto, um detalhe é imprescindível de ser destacado, esse segundo raciocínio (de que a melhor forma de o Estado conseguir a “neutralidade” é por meio da intervenção na economia) não se encaixa no caso do ICMS, pelo menos não na atual realidade desse imposto.
Talvez fosse possível imaginar a utilização do ICMS, por meio de políticas fiscais, como, por exemplo, instrumento para diminuição das desigualdades regionais, ou correção da concorrência desleal, caso ele fosse da competência da União. Dessa forma, o Governo Central, com base na isonomia material, poderia beneficiar alguns em detrimento de outros, mas de maneira justificável. Só que o que vem ocorrendo na prática, com esse imposto fazendo parte da competência dos Estados-Membros, é uma batalha inconsequente pela atração de empreendimentos para seu respectivo território.
Não tem como estabelecer uma política fiscal neutra no caso do ICMS porque a individualidade de cada estado vem se mostrando de maneira exacerbada, os quais tomam atitudes, relacionadas a esse imposto, apenas se preocupando com o si próprio. Apesar de a finalidade indireta, com essa prática, ser o desenvolvimento do estado e melhoria de vida para sua população, quando é concedido um benefício do ICMS, não há qualquer relação com a isonomia, ou diminuição da ineficiência da concorrência, ou em “assegurar a neutralidade”. Muito pelo contrário, esses incentivos fiscais geralmente são concedidos a indivíduos que têm uma situação econômica muito melhor do que a de seus concorrentes, sem qualquer preocupação com a isonomia; ocorre uma total distorção da concorrência, principalmente no mercado interestadual; e, consequentemente, o preceito de neutralidade da tributação é amplamente desrespeitado.
Nesse sentido, o ICMS deveria ser um imposto neutro, isso, até mesmo, decorre do próprio espírito dos IVA’s com o princípio da não cumulatividade. Na verdade, essa era a intenção quando da reforma tributária que criou o ICM, substituindo o antigo IVC (COÊLHO, 2015). Sacha Calmon cita como exemplo dessa constatação um pronunciamento feito por Fernando Antônio Roquete Reis, em conferência pronunciada no Auditório do Instituto de Técnica Tributária (ITT) da Secretaria da Fazenda de Minas Gerais, no qual ele disse o seguinte:
Falemos do ICM de agora, porque repleto de isenções a produtos, de reduções de bases de cálculo, de créditos fiscais estornáveis e de créditos fiscais utilizáveis, e não na construção romântica porém singela de um ICM “puro” como o queriam os autores da reforma tributária. (COÊLHO, 2015, p. 315)
Afirma Sacha Calmon (2015) que os idealizadores do Código Tributário Nacional efetivamente pensaram no ICM como um “imposto neutro” e, em decorrência disso, estabeleceram a uniformidade das alíquotas e a repercussão obrigatória ao consumidor final. No entanto, esse imposto, embora idealizado como neutro, tornou-se um relevante instrumento de intervenção econômica e social. Conforme o autor, “a ‘neutralidade’ do ICM tornou-se mera peça retórica” (COÊLHO, 2015, p. 315). Pois o ICM foi utilizado bastante pela União Federal como instrumento de política econômica, por meio de isenções heterônomas. Também no âmbito estadual, “mediante o mecanismo dos ‘convênios’, transformados em ‘Assembleias Legislativas de Estados Federados’, sob o guante autoritário da União (o famoso CONFAZ)” (COÊLHO, 2015, p. 315), esse tributo passou a se caracterizar cada vez mais como um tributo extrafiscal, gerando uma enorme disfunção econômica com consideráveis perdas de receita para os estados (COÊLHO, 2015).
Ademais, nos últimos anos vem tendo destaque uma forma de utilização do ICMS com finalidade extrafiscal bem mais impactante e danosa à economia, principalmente por ocorrer à margem da lei e de maneira totalmente ilimitada. Os Estados passaram a preconizar uma disputa acirrada pela atração de investimentos privados para seus respectivos territórios, sendo concedidos diversos benefícios relativos ao ICMS de maneira completamente ilegal, sem obedecer os requisitos e o procedimento previsto para a concessão deles. Disputa esta que envolve valores monstruosos e causa um impacto econômico bastante considerável (VALENTIM, 2003). Trata-se da famosa “Guerra Fiscal”, que há um bom tempo vem tendo destaque na jurisprudência pátria, sendo alvo de bastante discursão entre os juristas.
Fonte: jus.com.br
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